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Raw Traveller

Explorar o mundo através das lentes: um blog de viagem e natureza, onde as fotografias são a principal inspiração para a criação de narrativas visuais únicas, repletas de detalhes e curiosidades.

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26 de Maio, 2023

Os segredos ocultos do Caminho Português de Santiago desde Redondela: Uma jornada inesquecível de Peregrinação! (Parte 2)

A primeira parte desta viagem pode ser lida aqui.

Há uma questão que pode ter surgido com a primeira parte: "Porquê e qual a importância do Caminho Português?". O Caminho Português começa oficialmente em Lisboa e tem uma distância total de 600 km. Poucos são os que têm a coragem para começar em Lisboa, mas há quem o faça. A origem do Caminho Português remonta ao século XII, quando os primeiros portugueses começaram a viajar para Santiago de Compostela. A rota tornou-se uma opção popular para os peregrinos portugueses que queriam visitar o túmulo de São Tiago em Compostela. Ao longo dos séculos, o Caminho Português passou por várias transformações e mudanças, mas nunca perdeu a sua identidade e História. No entanto, a rota continuou a ser percorrida por alguns peregrinos, especialmente aqueles que estavam dispostos a arriscar a serem perseguidos e discriminados. No século XX, a rota experimentou um renascimento com um aumento significativo no número de peregrinos. Em 1993, a rota foi oficialmente reconhecida como uma rota de peregrinação pelo governo português.

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Dia 3 – O silêncio (Redondela – Pontevedra, 17 km)

O dia começou às seis da manhã e pela frente tinha uma etapa muito aguardada: uma das etapas mais bonitas e terminava numa cidade que sempre tive curiosidade de visitar. O caminho começou logo com uma subida desafiante, mas tudo se torna fácil quando estamos rodeados por árvores. Aproveitem as vistas para a Ria de Vigo e se tiverem vontade apreciem as cores do nascer do sol. A partir daqui dizemos adeus à água para entrarmos em território montanhoso. Há algo que se nota logo, aliás notei mal cheguei ao albergue: o número de peregrinos! É indiscutível que a partir desta etapa, irá haver enormes grupos de pessoas a caminhar ao nosso lado. Este fenómeno tem muito a ver com a junção dos dois Caminhos para Santiago. De dia para dia a quantidade de pessoas aumenta. Uns vão por fé, outros vão por curiosidade e ainda há os que vão só por ir. Esta heterogeneidade de motivos faz com que cada pessoa vá “na sua” e não incomode o outro; é certo que se formam grupos no momento, mas nunca é nada forçado. No entanto, basta mostrar sinais de fraqueza ou dor e vão ter várias pessoas a oferecer ajuda. Há muita gente a fazer os caminhos, mas a verdade é que somos quase sempre invisíveis. Muitas vezes “bon camino” é a única palavra que ouvimos durante todo o dia.

Um “bon camino” com um sotaque diferente foi o suficiente para trocar umas palavras com um grupo de portugueses que curiosamente também eram de Aveiro. Desde então, houve uma dança entre ora paro eu ora param eles, que nos fez cruzar várias vezes. Diria que eu fui o “culpado” das inúmeras vezes que nos cruzamos: paro muitas vezes, ao ponto de me terem de chamado tartaruga (com tom; carinhoso e de brincadeira); a verdade é que não tenho horas para chegar, nem para comer - O Caminho e o meu corpo é que tomam essas decisões.

O primeiro café aberto foi sinónimo de pequeno-almoço! Não gosto de caminhar de estômago vazio, mas hoje teve de ser. A partir daí a etapa teve como ponto principal a Ponte Medieval em Pontesampaio, uma zona muito bonita que merece uma pausa para contemplar as magníficas construções medievais. Não há bela sem senão e depois desta pausa somos presenteados com o segundo desafio do dia: uma íngreme subida que vai desafiar os mais valentes, mas com calma tudo se faz!

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Entrar em Pontevedra é caótico e desafiante no que toca à navegação; facilmente perdemos setas e acabamos perdidos. A História desta cidade remonta a tempos antigos, sendo que foi fundada pelos romanos no século II a.C. Durante este período, Pontevedra era conhecida como Pontis Veteris, que significa "ponte antiga", em referência à ponte romana que atravessava o rio Lérez. Ao longo dos séculos, Pontevedra foi governada por diferentes povos, incluindo suevos, visigodos e mouros. No entanto, foi no século XII que a cidade começou a prosperar, quando se tornou um importante centro comercial e portuário na região.  Enquanto descansam, aconselho a verem a Igreja de Santa Maria, construída no século XVI, a Basílica de Santa Maria A Maior, do século XVIII e o Santuário da Virgem Peregrina (construído em formato de vieira).

Curiosamente hoje não foi o melhor dia para se aproveitar o silêncio, pois foi o dia em que vi mais peregrinos. No entanto, ir com outras pessoas ou ir junto de alguém não significa que não possamos estar em silêncio. Hoje, foi dia de refletir sobre a importância de saber ouvir, uma qualidade que parece estar a ficar perdida no tempo. Parar 20 min, sentar numa pedra, tirar os sapatos (nesta altura é uma bênção), respirar fundo e ficar a ouvir! Mas porquê? Porque basta um pequeno segundo até começarmos a ouvir o ramo a cair, a água a correr ou o pardal a vocalizar. Depois disto, todo o cansaço vai embora. Esta é a segunda dádiva que o caminho nos dá (sendo que aprimeira é abrandar). Lembrem-se, o silêncio no meio do ruído pode dizer mais do que o ruído no meio do silêncio.

Dia 4 – O corpo e a mente (Pontevedra - Caldas de Reis, 20 Km)

Mais uma vez, o dia começou às 6 da manhã, mas desta vez tive direito a pequeno-almoço no albergue. Uma pequena nota: marcar um albergue com pequeno-almoço incluído é algo que devem de evitar, são poucos aqueles que têm o pequeno-almoço disponível a qualquer hora! Isto não faz sentido, porque todos queremos começar a caminhar o mais cedo possível e ninguém vai esperar pelas oito da manhã para comer no albergue.

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Pessoas! A ponte que nos leva até à zona bucólica de Pontevedra está cheia de peregrinos e rapidamente vemos que estamos inseridos num grupo que só se começa a separar quando os primeiros cafés aparecem (já uns bons quilómetros dentro da etapa). A etapa exige pouco do peregrino e leva-nos pelas zonas mais rurais da Galiza. Somos presenteados por vistas incríveis, bosques verdejantes, campos agrícolas e riachos refrescantes. Não posso deixar de destacar o segmento entre a paróquia de Cerponzons e San Mamede da Portela.

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A parte final da etapa é ladeada por vinhas. Isto pode até ser um cenário maravilhoso, mas estamos a falar de quilómetros e quilómetros de vinhas. Foi a primeira vez que senti um cansaço psicológico e a dúvida de se ia conseguir acabar. Estamos perto, mas ainda falta muito! O psicológico é mesmo tramado! A etapa terminou uns quilómetros antes de Caldas de Reis, porque decidi ficar num albergue, que para além de uma piscina, tinha um bom relvado e, acima de tudo, um pequeno restaurante. Nunca uma tortilha soube tão bem!

Caldas de Reis é uma cidade termal conhecida antigamente como Aquis Celenis. Na época romana, era famosa pelas águas termais, sendo um local de descanso e tratamento para romanos. Durante a Idade Média, Caldas de Reis continuou a ser valorizada pelas águas termais e tornou-se um destino popular para peregrinos que seguiam o Caminho Português. Caldas de Reis é possivelmente a cidade mais bonita do Caminho Português!

Hoje foi dia de perceber o papel que a nossa mente tem no corpo e como isso pode influenciar a forma como desfrutamos do momento. Os atletas de endurance dizem que o ponto crítico de uma prova é quando a mente atinge uma barreira psicológica. Se passarem a barreira "desbloqueiam" forças que não sabiam que tinham e fazem feitos notáveis; se não passarem a mente ganha e o corpo desliga. Hoje, foi o dia de quebrar a minha barreira, o corpo queria parar e a mente estava a querer ceder. Até porque estava em terreno desconhecido, nunca tinha caminhado tantos dias com médias de 18km com 8 kg às costas, mas eu sabia que estava fisicamente bem. Bastou um bom podcast e a barreira começou a ser quebrada e os km's a serem superados. Isto mostra a importância de termos uma mente saudável e um bom conhecimento do nosso corpo. Hoje, quebrei uma nova barreira! Como dizem "o caminho é psicológico". No fim foi uma descarga de adrenalina e um sentimento de conquista.

Dia 5 – O caminho (Caldas de Reis - Padron, 20 Km)

Acordar às seis da manhã já se tornou um hábito. Mas, não fui o único a acordar: Os meus companheiros de quarto acordaram à mesma hora. Companheiros esses que vão ser presença regular nos próximos dois dias. Não porque andamos juntos, mas sim porque nos iremos cruzar ao longo do percurso.

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A beleza desta etapa é inigualável! O dia começou com a luz do sol a bater nas vinhas e ao atravessar Caldas de Reis percebo que estamos numa cidade com uma História rica e uma beleza acima da média. Em contraste com a etapa 2 (que foi por alcatrão), a etapa 5 leva-nos por um bosque que nos faz lembrar a Serra de Sintra. Este bosque é o Monte Albor: no topo, existe uma cruz conhecida como "Cruz de Albor", que se tornou um símbolo da região. A cruz oferece um local de contemplação e é considerada um marco importante para os moradores locais. O segundo ponto de interesse é o vilarejo de Carracedo, conhecido pela antiga ponte romana e pela Igreja de Santa María de Carracedo. Este é um local onde os peregrinos podem descansar e apreciar a atmosfera tranquila antes de continuar a sua caminhada.

A aproximação a Padrón; é feita por pequenos vilarejos, como Cruces e Valga, onde se pode fazer uma pausa ou pequeno reabastecimento. Foi à cidade de Padrón que chegaram, de barco, os restos mortais do apóstolo Santiago. Padrón abriga a Igreja de Santiago de Padrón, onde se acredita que tenha sido ancorado o barco que transportava os restos mortais. A cidade também é conhecida pelos  seus pimientos de Padrón que fazem uma óptima conjugação com uma cerveja. Se tiverem força e vontade, não percam oportunidade de explorar esta pequena cidade.

Foi precisamente aqui que me voltei a reunir com o escocês que conheci em Redondela e que voltei a ver caras familiares. É hora de aproveitar uns pimientos Padrón e de ir descansar. O fim está perto.

Esperava-me mais um longo dia pela frente, podia estar cansado, mas não! O dia começou com uma curta caminhada pelo meio de vinhas e a partir daí o dia só melhorou! Possivelmente foi o dia mais bonito de todo o caminho. Deu para apreciar a natureza, encontrar uma cara familiar (com direito a um convívio no fim da etapa de hoje) e principalmente foi um dia para sentir o poder que a natureza tem sobre nós. Aproveitem o que a natureza tem para oferecer e cuidem dela. Amanhã é o grande dia!

Dia 6 – Gratidão (Padron - Santiago de Compostela, 25 Km)

A ideia inicial era começar a última etapa às seis da manhã, mas o albergue entrou em alvoroço as cinco da manhã! Se não os podes vencer, junta-te a eles e lá me levantei para começar o caminho às 5h30 da manhã. Este início madrugador revelou-se ter sido uma decisão acertada! Santiago de Compostela reservou o último dia para meter todas as dificuldades que podíamos encontrar, como se chegar aqui já não tivesse sido uma vitória. É para chegar em glória! Esta é a etapa com maior desnível acumulado e tem uma longa subida em gravilha que só de olhar já mete respeito.

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Cheguei! Emoção, adrenalina, sensações mistas! E finalmente a Catedral. A chegada foi repleta de cumprimentos e abraços às pessoas com que me tinha vindo a cruzar: ao escocês de Redondela, ao grupo de espanhóis da primeira e quarta etapa, aos portugueses da terceira etapa… todos estávamos na Praça de Obradoiro. É estranho, mas é neste momento que sentimos que fazemos parte de uma família de desconhecidos, que ao longo destes dias se têm vindo a cruzar. O mais certo é nunca mais os ver, mas também é certo que não os irei esquecer. O Camino é isto!

Não posso deixar de acabar o artigo com um pouco da história de Santiago de Compostela e da sua Catedral. A história de Santiago de Compostela remonta ao século IX, quando se acredita que os restos de Santiago tenham sido descobertos no local onde hoje está a catedral. A cidade recebe peregrinos de todas as partes do mundo, que se reúnem para celebrar a sua fé, vivenciar a atmosfera única da cidade e admirar a grandiosidade da Catedral de Santiago de Compostela.  A Catedral de Santiago de Compostela, datada de 1075, é uma obra-prima da arquitetura românica, gótica e barroca, refletindo a evolução artística ao longo dos anos. Além da catedral, Santiago de Compostela possui uma cidade antiga charmosa e bem preservada, com ruas estreitas de paralelepípedos e praças encantadoras. A cidade é reconhecida como Patrimônio Mundial pela UNESCO devido à sua riqueza histórica e cultural.

Estou a escrever estas palavras minutos após ter terminado a última etapa e gratidão é a única palavra que me vem à cabeça. Gratidão por cada "Bom Dia", por cada "Bon Camino”… gratidão por esta aventura. É difícil dizer qual é a sensação que se tem ao ver a catedral, principalmente após 120 km a pé. Por fim, ver rostos conhecido é um conforto que não esperava ter, foi de facto uma grande surpresa e a maior dádiva desta aventura. Ver estas caras familiares e trocar uma palavra de "parabéns", só ajuda a elevar o espírito que pode estar abalado ou cansado. Os minutos após ver a catedral são de uma enorme descarga de adrenalina. Este dia foi um lembrete para a expressão "o caminho não se faz sozinho"... Estamos sempre acompanhados.

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Bon Camino.

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